sexta-feira, fevereiro 25, 2011

Além dos núm3ros

Por que em um mundo cada vez mais complexo e caótico não é possível tomar decisões baseadas apenas em cifras e equações. E como os executivos, treinados para adorá-las, devem agir


Por Roger Martin ilustrações_Zeh Otávio


Vivemos em um mundo que se preocupa com previsões e que se deixou seduzir pela análise quantitativa. Na área de negócios, a evidência é clara: profissionais especializados em prognósticos produzem previsões precisas de crescimento econômico valendo-se de inúmeros modelos econométricos. Os CEOs dão orientação detalhada de previsão de lucros para os mercados de capitais a cada trimestre. No mundo da saúde, os geneticistas fizeram o sequenciamento do genoma humano e preveem a eliminação de numerosas doenças. No dia a dia, somos governados por máximas do tipo: "Você testou esses números?" e "Se não dá para medir, não serve".



E para onde essa obsessão nos levou? Não muito longe, eu diria. Os economistas, por exemplo, vivem errando. Em meados de 2008, nenhum dos macroeconomistas ou das instituições de previsões mais importantes prognosticavam que a economia fosse encolher naquele ano, muito menos que fosse ruir como acabou desastrosamente ruindo. Mas, sem se deixar intimidar, esses mesmos economistas, que simplesmente não foram capazes de prever a recessão, recorreram novamente aos mesmos modelos quantitativos e científicos para prever de que forma a economia se recuperaria. Porém, acabaram errando quase tudo de novo.



Da mesma maneira, os CEOs continuam a dar orientações trimestrais com base em seus sofisticados sistemas de planejamento financeiro, mas também continuam errando. Eles são criticados não pelo seu mau desempenho, mas por não serem capazes de prever com exatidão, e com meses de antecedência, o desempenho de sua empresa. No caso do sistema de saúde, logo que foi concluído o sequenciamento do genoma, os cientistas que haviam previsto a resolução dos mistérios médicos do mundo foram obrigados a admitir que o projeto inteiro suscitou mais dúvidas sobre a complexa interação entre os genes do que respostas.



Nosso entranhado desejo de quantificar o mundo não deve ser motivo de espanto: dada a complexidade que nos desafia todos os dias, é natural que busquemos formas de compreender e de controlar tudo o que pudermos. O mundo, porém, não está respondendo bem às nossas tentativas, deixando claro que se recusa a ser organizado, entendido e controlado de modo exclusivamente quantitativo. Tal como um cavalo de corrida puro-sangue, quanto mais puxamos as rédeas para controlá-lo tanto mais ele resiste ao nosso comando porque quer provar uma coisa: que não é uma máquina que responde do jeito que o manual do usuário diz que deve responder; ao contrário, é um sistema de sistemas imensamente complicado e ambíguo que desafia toda e qualquer quantificação. Um ambiente desses requer um tipo pouco difundido de análise, do tipo que dá atenção à qualidade, e não apenas à quantidade.


O paradigma quantitativo x qualitativo_Não há como negar os pontos fortes do paradigma quantitativo: quando utilizado num contexto adequado, os métodos que utiliza produzem dados confiáveis. Contudo, o paradigma não se sustenta quando o fenômeno analisado é realmente complexo ou obscuro. A principal fraqueza da estratégia quantitativa é que ela descontextualiza o comportamento humano, retirando o evento do seu lugar no mundo real e ignorando os efeitos das variáveis não incluídas no modelo.



Seria uma maravilha se, no momento em que fossem fazer a previsão do Produto Interno Bruto, os macroeconomistas pudessem simplesmente somar todos os empréstimos contratados para determinar o valor do crédito em circulação e, em seguida, introduzissem esse valor em um modelo econômico. Mas não é tão fácil assim. Infelizmente, conforme descobrimos em 2008, nem todos os empréstimos são iguais, e existem inclusive alguns – principalmente os das hipotecas subprime – que realmente não valem o papel em que foram escritos. A vida seria bem mais fácil se, ao tentar prever o volume de vendas do trimestre seguinte, os CEOs simplesmente fizessem uma extrapolação com base nas vendas do mês passado. Mas pode ser que essas vendas não sejam uma base tão sólida assim para o crescimento conforme esperávamos – principalmente se for precária a relação com o cliente que lhe serve de sustentáculo. Também seria fantástico se, depois de concluído o sequenciamento do genoma, os cientistas tivessem dito: "Este aqui é o gene do linfoma; aquele ali, do mal de Alzheimer". Mas não foi isso o que aconteceu.



A principal deficiência nesses dois exemplos é que eles dependem totalmente de quantidades para produzir respostas e, com isso, ignoram tranquilamente as qualidades. Conforme disse Elliot Eisner, especialista em educação: "Nem tudo que importa pode ser quantificado, e nem tudo que pode ser mensurado é importante".



Diferentemente das quantidades, as qualidades não podem ser mensuradas objetivamente. Podemos contar o número de pessoas em uma sala, mas isso nada nos diz sobre a qualidade da interação do grupo – se ela ocorre num clima de otimismo, de desinteresse ou de conflito. Temos de compreender melhor o papel das qualidades para que possamos navegar por esse mundo ambíguo e incerto em que vivemos.



Infelizmente, conseguir entender o que são qualidades e saber trabalhar com elas é um grande desafio, dada a guinada brusca que deu nosso sistema de ensino formal em direção ao raciocínio quantitativo. Como sublinha Hilary Austen, professora adjunta da Rotman School of Management: "Os resultados dos testes com perguntas do tipo certo ou errado servem, sem dúvida alguma, para nos situar em relação a outros membros da nossa classe. O raciocínio quantitativo nos permite agir com precisão e a compartilhar aquilo que compreendemos. Nós o utilizamos para definir o que é justo, racional e eficaz, e foi esse aspecto prático que levou tanta gente a tratá-lo como sinônimo de inteligência".



O fascínio da suposta equivalência entre inteligência e pensamento quantitativo tem levado as escolas de ensino superior a obrigar milhões de estudantes a prestar exames classificatórios para admissão a uma universidade ou a um curso de pós-graduação. Os testes, aparentemente, avaliam os conhecimentos de matemática ou de inglês, mas são, predominantemente, avaliações de solução de problemas pontuais. Apesar de sua célebre incapacidade de prever o que quer que seja sobre o provável desempenho na vida de quem faz o exame, os testes são sagrados. Os futuros estudantes costumam ser vistos pelos departamentos de admissão como criaturas unidimensionais associadas a um determinado número de pontos – por exemplo, "Fulana é uma GMAT 750", em vez de "Fulana fez 750 pontos no GMAT".



Infelizmente, isso é apenas o começo dessa obsessão com o desempenho escolar. De modo geral, rompida a barreira do ensino superior, o raciocínio dos estudantes passa a ser alvo de uma porção de outras ferramentas, modelos e metodologias quantitativas, seguidas de mais testes valendo pontos que garantam a validade e o bom uso da parafernália quantitativa utilizada. Como consequência, a maior parte dos estudantes se forma e usa seu conhecimento conceitual recém-adquirido como se fosse uma receita ou um livro de colorir cujas cores já vêm predeterminadas. Produzem então análises que lhes digam o que é certo e o que é errado, verdadeiro ou falso. Caso esses alunos se formem em uma área de exatas (ciências, tecnologia, engenharia ou matemática), o Conselho Nacional de Pesquisas (NRC) e a Fundação Nacional de Ciências (NSF) vão dar pulos de alegria, porque são essas as áreas que consideram as mais importantes para que um país seja competitivo no mundo.



O NRC e a NSF talvez tenham razão quando dizem que estamos produzindo poucos formandos nessas áreas – embora, curiosamente, não haja evidências quantitativas que confirmem tal declaração. Não é de surpreender, portanto, que quando se fazem comparações, as quantidades relativas de formandos na área de exatas são divulgadas sem que se dê atenção alguma à sua qualidade. No entanto, se realmente é verdade que os desafios do mundo terão níveis cada vez maiores de ambiguidade, complexidade, singularidade e indeterminação – conforme tudo indica –, a mera capacitação na área de exatas não será suficiente para nos salvar. Será preciso construir uma forma diferente de inteligência para lidar com os problemas específicos que temos de enfrentar, e isso requer uma inteligência qualitativa.



Como diz Hilary Austen: "Exercitamos a inteligência qualitativa sempre que permitimos que as ações gerem resultados, em vez de usá-las para alcançar objetivos preestabelecidos; quando raciocinamos com base na experiência sensorial, em vez de recorrer a símbolos abstratos; ou sempre que agimos sem hesitação com base naquilo que sabemos, deixando espaço, porém, para possíveis surpresas; quando usamos uma combinação de experiências imediatas e acumuladas para fazer previsões e, em seguida, revisamos a ação imediata".


Para Hilary e outros, como o estudioso da administração Donald Schön, já morto, a inteligência qualitativa é sinônimo de espírito artístico e está no cerne de excelência de qualquer profissão. Schön disse certa vez: "O talento artístico de pintores, escultores, músicos, dançarinos e designers guarda forte semelhança espiritual com o talento artístico de advogados, médicos, gerentes e professores de alto nível. Não é por acaso que os profissionais quase sempre se refiram à ‘arte’ do ensino ou da gestão".



Uma demanda cada vez maior de capacidade artística_Para lidar de forma eficaz com os desafios do mundo moderno – e não apenas com subsegmentos acanhados deles – é preciso talento artístico. Se não houver o desenvolvimento explícito do raciocínio qualitativo, de operações mentais sofisticadas, como aquelas necessárias à tomada de decisões diante de incertezas, de ambiguidades, ponderando as consequências e respondendo de maneira adequada às surpresas, continuaremos aquém desses desafios. Não importa qual seja nosso meio de vida, temos de ser capazes de ir além da simples utilização do conhecimento como se fosse receita, nutrindo expectativas mais elevadas do que a mera trituração de dados para a produção de respostas pontuais.


Para alguns, esta talvez seja uma posição muito radical e, é claro, são muitas as perspectivas legítimas e conflitantes. Implicitamente, instituições como o NRC e a NSF encaram a situação de maneira diferente, sem falar dos inúmeros livros sobre administração que exortam os profissionais de negócios a ser mais analíticos e quantitativos em suas estratégias. Minha posição privilegiada em relação à estratégia de negócios e à formação na área de administração me convenceu de que temos de preparar e formar "artistas dos negócios" mais do que analistas de negócios.



Embora tal visão não seja muito popular, cada vez mais os executivos testemunham as deficiências de um mundo obcecado pela quantidade. Em junho de 2008, entrevistei Scott Cook, o cérebro por trás da Intuit, no auditório de um congresso de design em São Francisco. Com um ar pensativo, ele admitiu francamente: "O que aprendi sobre o velho estilo de fazer negócios – com base em modelos analíticos e dedutivos – é que ele não está mais à altura do seu desafio. Em vez de construir valor, o modelo antigo o destrói". Cook não estava depreciando a capacidade de sua empresa de produzir números, e sim indicando que só isso não era mais suficiente: seu pessoal precisava observar mais e se deixar surpreender.



Cook contou como nasceu o QuickBooks, o produto que transformou sua empresa e impulsionou seu crescimento extraordinário. Antes do QuickBooks, o principal produto da Intuit era o Quicken, um programa pessoal de gestão financeira. Logo no início, uma pesquisa feita entre os consumidores mostrou que metade dos usuários não usava o aplicativo em casa, e sim no escritório. Foi uma descoberta interessante, mas que a empresa preferiu, inicialmente, considerar absurda ou simplesmente equivocada. "Decidimos ignorá-la", disse. "Seguimos em frente despreocupados."



Mas aquele resultado estranho continuava a aparecer e, passados alguns anos, Cook decidiu parar de ignorá-lo. Ele resolveu investigar o que estava acontecendo. Visitou alguns usuários e conversou com eles para saber o que estava se passando. Sua equipe descobriu que havia, de fato, um grande segmento de clientes que usava o produto de uma maneira que não havia sido planejada pela Intuit. Eram pequenas empresas que haviam decidido usar o Quicken, um software para uso pessoal, porque se tratava de um programa simples e amigável, sem a complexidade dos similares de contabilidade profissionais. Acreditava-se que essas empresas queriam softwares contábeis tradicionais, com operações de débito e crédito etc., e que essa era sua necessidade, por isso não havia nada além disso à sua disposição, até que surgiu o Quicken.



Diante desse fato novo, a Intuit poderia ter seguido em frente como vinha fazendo, privilegiando o usuário doméstico e tirando partido da vantagem extra proporcionada por aqueles usuários recém-descobertos dentro das empresas. Em vez disso, Cook e sua equipe decidiram acolher a surpresa. "Acho importantíssimo aproveitar as surpresas", diz ele. "Se surgir alguma coisa realmente surpreendente – uma coisa boa ou ruim –, é quase certo que se trata do mundo real falando com você, dizendo-lhe que existe algo que você ainda não compreendeu. E essa coisa que você ainda não conseguiu compreender pode trazer junto uma mudança incrível de mentalidade, uma mudança de paradigma capaz de sacudir o seu mundo."



Foi o que aconteceu à Intuit. A empresa criou um software de gestão financeira fácil de usar voltado especificamente para pequenas empresas. Depois de um mês, já era líder do segmento. Só quando passou a cultivar a surpresa e se dispôs a imaginar sua clientela sob um conceito novo e diferente a Intuit conseguiu ter e manter o sucesso alcançado. Cook resumiu a transformação da seguinte forma: "Tivemos de mudar drasticamente a direção do pêndulo, isto é, abandonamos o modelo deliberativo, de cima para baixo, entremeado de numerosas discussões e apresentações em PowerPoint, e adotamos um modelo ‘emergente’ – em que as soluções e decisões emergem da ação individual baseada na observação e na experimentação, e não naquilo que o chefe diz. Quanto mais eu analiso o modelo das empresas bem-sucedidas, tanto mais eu vejo que elas trabalham nesse esquema".



Nesse mesmo congresso, conversei também em evento realizado no auditório com Claudia Kotchka, que fez uma mudança semelhante na direção do pêndulo da Procter & Gamble. Ao explicar de que modo os designers mais sensíveis à questão da qualidade diferiam dos seus colegas mais preocupados com quantidade na P&G, ela disse: "Os designers não estão atrás de uma resposta que seja ‘a’ resposta, porque em design, não há resposta certa. É uma leitura totalmente distinta da científica".



Quais são as implicações dos insights de Hilary, Eisner, Schön, Cook e Claudia para os negócios e para a formação dos gestores? A mensagem principal para as empresas é que elas precisam aprender a valorizar a qualidade. Isto significa não se deixar obcecar pela mensuração a ponto de negligenciar qualidades fundamentais, mas que não se deixam mensurar, na hora de interpretar uma determinada situação. Considere a possibilidade de que se há algo que não se pode medir, talvez seja esse o aspecto mais importante do problema que sua empresa está enfrentando. Seja qual for o setor, é preciso que as pessoas se esforcem para compreender as qualidades e quantidades do ambiente em que trabalham.

Quero deixar aqui três conselhos em relação ao paradigma da qualidade. Em primeiro lugar, espero que tenha ficado claro que tomar decisões não tem a ver só com equações e símbolos. Temos de usar todos os sentidos na hora de formar uma opinião e de tomar decisões. Os números podem nos ajudar a descrever uma experiência sensorial, mas não podem substituí-la. A.G. Lafley, ex-presidente e CEO da P&G, um dos melhores CEOs do mundo no tempo em que ocupou o cargo, me disse certa vez: "A análise nunca nos dá a resposta. O máximo que ela faz é fornecer subsídios úteis à avaliação do problema. Se você acha que a análise vai lhe dar a resposta, lamento dizer que essa resposta vai desapontá-lo".



Em segundo lugar, jamais despreze um sentimento forte que você não consegue explicar. Em setores em que sua experiência qualitativa está apenas começando, os sentimentos virão à frente da sua capacidade de explicá-los a outra pessoa – sobretudo porque você mesmo não consegue explicá-los para si próprio. Isso, porém, não significa que estejam errados. Em vez de ignorar esses sentimentos, você deve integrá-los à sua análise quantitativa.

Em terceiro lugar, cultive a surpresa e aprenda a acolhê-la. Se o tipo de ação que você escolheu para sua empresa – isto é, seu modelo – está produzindo um resultado que você não esperava, não fique chateado e não jogue fora seu experimento. Em vez disso, aprenda com ele e faça os ajustes necessários ao modelo.

Tudo isso coloca grandes desafios tanto para a empresa quanto para a formação do gestor, porque ambos foram treinados para criar e adorar modelos e resultados quantitativos. No momento, professores, estudantes e a própria pedagogia não estão preocupados com o desenvolvimento de capacidades qualitativas. É lamentável que estejamos educando apenas uma parte do cérebro dos nossos estudantes. Temos de trabalhar a educação da mente inteira – a parte analítica, sim, mas também a artística, a quantitativa e a qualitativa. Os estudantes precisam aprender a pensar criticamente, e de forma criativa, tanto quanto precisam aprender a mexer com números... No fim das contas, essa é a única maneira de criar líderes capazes de lidar com nossos problemas mais difíceis e de responder às nossas perguntas mais complexas.


* Roger Martin é reitor da Escola de Administração Rotman, da Universidade de Toronto. Reproduzido com permissão da revista Rotman, editada pela instituição


FONTE: http://epocanegocios.globo.com/Revista/Common/0,,EMI216477-16366,00-ALEM+DOS+NUMROS.html